Entrevista de Clóvis Moura para Jornal O Berro D'ÁGUA

 

EU SOU NEGÃO!

Clóvis Moura é velho conhecido de Juazeiro. Aqui passou 4 anos da sua juventude (1944-1948), trabalhando como funcionário público federal, no Imposto de Renda, e militando como um dos principais dirigentes, nas fileiras do Partido Comunista.

Do Juazeiro dessa época, ele lembra a reação conservadora das oligarquias políticas do município às posições que defendiam a ponto de bani-lo da convivência com pessoas da classe média e de frequentar Clubes Sociais, como a Sociedade 28 de Setembro.

É dessa época também que o sociólogo confessa seu interesse pelo estudo das questões inter-raciais no Brasil. Uma questão tão importante que se cruza com aspectos mais gerais da sociedade brasileira. E o que sobressai da sua argumentação é o pensamento engajado de quem se debruça sobre a realidade para desvendar seus meandros e transformá-la. Constatem:

 1. Do Juazeiro que o sr. viveu há 40 anos atrás e o de hoje, que visão o sr. tem?

R. O ambiente de Juazeiro há 40 anos é muito diferente do que é hoje. Ainda que a sociedade seja a mesma, houve um processo de modernização, de revisão de certos conceitos petrificados. Não mudou qualitativamente, mas houve uma série de mudanças no comportamento da população da cidade, na forma de julgamento das pessoas. Eu era marxista, bastante jovem e praticamente o único da classe média que participava do movimento comunista. Isso era motivo para ser estigmatizado, para ser considerado quase que como um doente. O homem que se dissesse comunista naquele tempo e quisesse frequentar a Sociedade 28 de Setembro ou ter círculos de amizade na classe média ele não conseguia, porque em primeiro lugar ele era comunista depois então se considerava as outras coisas. Era estereotipado. Hoje você pode dizer que não acredita em Deus e o pessoal olha assim não procura discutir muita coisa. A força da igreja era superconservadora. Hoje em certas áreas, como aqui em Juazeiro, já é uma igreja aberta, progressista que procura discutir problemas que antes nós discutíamos por sermos comunistas. Hoje, a União Soviética está investindo em Pernambuco. Naquela época sequer havia relacionamento com os soviéticos. Então era um momento de neurose do pós-guerra, da guerra fria e isto se refletia no comportamento do mundo todo e a gente enfrentava isso. No petróleo não podíamos falar porque era coisa de comunista. A paz! Se a gente falasse na paz era coisa de comunista. Hoje o Papa fala na paz. Isso que mudou mundialmente já sentimos os reflexos aqui. É como uma pedra que a gente joga no lago e as ondas vão se formando até…

2. A ação do PC, na época, era mais em que sentido?

R. A ação do PC era mais concentrado nos fluviários. Aqui era uma grande concentração de fluviários da Viação Baiana do São Francisco. E nos concentrávamos aí porque tinham uma força social e política muito grande. Fizemos uma greve, parece que em 48, e paramos mais de 40 dias a navegação no São Francisco, numa época em que o grande escoadouro da produção que corria para Pirapora, e de lá para Juazeiro, para pegar depois a estrada de ferro, porque ainda não havia essa inflação rodoviária que existe hoje. Não tínhamos um programa de classe média para ser aplicado em Juazeiro, porque mesmo os problemas sociais de subdesenvolvimento da cidade, iluminação que era horrível, o problema de higiene, do esgoto, essa coisa toda, se nos levantássemos, aquilo ficaria mais estigmatizado como comunismo. Nós tínhamos um jornal diário em Salvador, O Momento e mandávamos material para eles publicarem. Haviam dois jornais aqui que saiam esporadicamente, mas nossa presença numa das redações marcaria o jornal como comunista. Dois fluviários foram presos como subversivos. Hoje nós temos a Petrobras. Quer dizer, aquilo que era subversivo porque nós levantávamos a bandeira, era de fato uma necessidade da sociedade brasileira para avançar, se modernizar, para ser uma sociedade aberta. Então aqui se refletia muito o aspecto do atraso ideológico e reprimia praticamente toda proposta de democratizar a sociedade brasileira. E com isso nós éramos, eu pessoalmente, uma coisa estranha. Depois foi com Muccini que ficou.

3. E hoje, qual é sua ideologia?

R. Eu sou marxista e todo mundo sabe disso, meus livros refletem isso. Através da dialética materialista procuro interpretar os fatos sociais inclusive o problema do negro no Brasil. Mas isso não me estigmatiza mais. É porque houve uma modernização do pensamento.

A presença das oligarquias regionais que dominavam a política de modo geral, se apresentava de uma forma opressiva no cotidiano de um cara que tinha o pensamento que eu tinha e ao mesmo tempo era funcionário federal que trabalhava num órgão de arrecadação do governo, o imposto de renda, e não tinha nenhum segredo em declarar minhas posições, falar, fazer comícios – ali atrás da banca a gente fazia um quase todo dia.

4. Por que o sr. acha que o problema racial no Brasil é tão importante que se cruza com o problema social?

R. Pelo seguinte: nós temos no Brasil mais de 300 anos de trabalho escravo. Fizemos agora 100 anos de trabalho livre e, evidentemente, essa herança cultural, social e econômica da escravidão, ela ainda existe em grande parte da população brasileira. Nós fizemos a abolição e não mexemos na estrutura do país. O perfil, social, estrutural do Brasil, ainda é praticamente o mesmo do tempo que se fez a abolição, aliás, de antes da abolição. Isso implica em que toda ideologia de dominação da classe senhorial daquela época, foi herdada pela burguesia agrária, pelos latifundiários. Eu via que no momento em que se dizia que havia no Brasil uma democracia racial, eu dizia: mas se não há uma democracia plena no Brasil?

5. E por que não se pode dizer que há democracia racial sem democratizar a sociedade como um todo?

R. Você tem que ver que existe uma população marginal, que foi marginalizada com a abolição e não tem acesso à terra para trabalhar, fica na periferia das grandes cidades. Essa franja marginal, aliás, marginalizada, não foi absorvida pela sociedade por não se democratizar. Se houvesse uma fragmentação da propriedade privada, se tivesse havido uma reforma agrária – alguns abolicionistas chegaram a levantar o problema e esses negros egressos da senzala fossem absorvidos pelo sistema econômico através da pequena propriedade, não haveria o problema racial no Brasil hoje. Mas como isso não foi feito o problema do negro, das etnias não brancas, está dependendo da possibilidade de se fragmentar a grande propriedade, de se dar terra ao pobre sem terra, que é o bóia-fria, o desempregado, o subempregado – (todos praticamente são pardos ou pretos). Portanto, se você não democratiza a sociedade e reintegra esse pessoal numa economia de consumo, não numa economia socialista, você não pode falar em democracia racial. Essa borra marginalizada, é mantida para sustentar a estrutura do capitalismo dependente que substitua a escravidão. E essa estrutura tem necessidade de uma grande faixa marginalizada para manter os baixos salários – porque se você sabe que para cada emprego tem 2 pessoas que podem substituí-lo aí então você luta; mas se você sabe que 20 pessoas podem eventualmente substituir o trabalhador porque ele luta por melhores salários, essa estrutura consegue congelar as reivindicações. Então impede que uma grande massa entre num processo de radicalização, pelo menos econômico. Por que existe o preconceito de cor? Por que o negro é mais feio? Não. O preconceito de cor tem função social. A função do imobilismo social das camadas pobres e no Brasil se reflete nas camadas não brancas. Então se você não democratiza a sociedade, não vai resolver o problema racial…

6. Mas o sr. acha então que democratizando a sociedade, o racismo tende a desparecer ou para que isso aconteça, além da democracia de fato faz necessário também um outro momento, para trabalhar os valores raciais?

R. Quando falo que a democratização acaba com as raízes sociais da ideologia racista – toda ideologia é uma superestrutura – nós criamos as premissas para acabar com o preconceito, ele não acaba automaticamente. O racismo, penetra de tal maneira que mesmo acabando com as bases sociais criadas pela sociedade ele continua porque nós temos um subconsciente racista e esse subconsciente talvez perdure por 2, 3, 4 gerações – . Mas o que a gente vê é que nos países onde não há competição o racismo tende a desaparecer. Agora mesmo na França está havendo uma onda de racismo contra os imigrantes que chegam no mercado de trabalho. Criou-se até um partido racista. Nós vemos na Inglaterra a onda de racismo contra os antigos membros das ex-colônias que foram para Londres como estudantes, trabalhadores. O racismo ressurge na medida em que a competição se aguça.

No Brasil nós temos a grande herança da escravidão. 100 anos de trabalho livre, em termos de história não quer dizer nada. Então, o brasileiro ainda tem o subconsciente altamente preconceituoso. Nós vemos na sociedade brasileira como a estrutura não se modificou. A ideologia racista continua exercendo uma função. Numa sociedade não competitiva ela perde essa função.

7. O que quer dizer a expressão etnia não branca. A que o sr. se refere, o índio está incluído aí?

R. Incluo o índio. Podemos também colocar os japoneses – que são ponderáveis em São Paulo, os turcos – que são discriminados em certas áreas de São Paulo, (tem família quatrocentona que não permite que suas filhas se casem com turco) – as áreas de modo geral tudo aquilo que não é tipo ideal branco-europeu, que não existe praticamente, mas que se criou a tipologia: ter olhos azuis, medir 1,70 no mínimo, ter ombros largos, tez bonita etc. Então esse é o tipo ideal. E as etnias não brancas são as amarelas, negras, turcas, índios. Tudo aquilo que foge ao padrão que se estabeleceu como superior.

8. O índio foi escravizado como o negro. Por que sua “sorte” foi outra e ainda hoje ignorada?

R. A população do índio no Brasil antes da descoberta era de 4 milhões por aí. Negros, foram trazidos mais ou menos 8 milhões. O número de negros importados era bem superior ao número de índios. Na primeira fase, a fase da conquista, o índio foi dizimado exatamente porque o índio era o dono da terra e o colonizador queria a terra. Na fase de colonização, escravizou-se o índio. E a escravidão do índio deu certo no Maranhão e em tudo quanto foi lugar. Por que desapareceu? Esse é que é o problema. Não é porque ele fosse mais altivo. Não é nada disso. O índio era uma mercadoria barata e o lucro de ponta não chegava até a metrópole. Criou-se então o que nós chamamos de tráfico triangular que foi organizado exatamente para se criar a acumulação capitalista das metrópoles, principalmente da Inglaterra. Então foram criadas as grandes companhias de navegação objetivando o tráfico triangular. E com isso os jesuítas entraram também na pregação da defesa do índio e da substituição do escravo indígena pelo escravo africano.

9. Como funcionava o tráfico triangular?

R. O tráfico triangular era o seguinte: formava-se na Inglaterra as grandes companhias navegadoras e se criava aquilo que chamo de uma indústria negreira que era a indústria de preparar os objetos para serem trocados por escravos: armas, facas, espadas, espelhos etc. E os navegadores vinham para as áreas coloniais onde havia a escravidão (Brasil, EUA, Caribe) e vendiam esses negros por um preço altamente lucrativo. Depois eles pegavam os navios e enchiam de produtos coloniais e levavam para as metrópoles. Esse tráfico triangular fazia com que o lucro de ponta ficasse na metrópole formando toda uma estrutura mercantil comercial, em cima do escravo negro.

10. Mas, e o índio com esse tráfico triangular?

R. Foi criado uma série de mecanismos para tirar do índio o ônus do trabalho escravo, não para protegê-lo, mas no sentido de tirá-lo da competição com uma mercadoria que dava muito mais lucro à metrópole, traficantes e intermediários do tráfico. De maneira que o bandeirante pegava o índio, vendia e acabava a transação por aqui mesmo. Com o tráfico negreiro não. Através do tráfico triangular, formam-se toda uma estrutura mercantil e embora ele fosse mais caro foi imposto através das leis “protetoras” ao índio pelos próprios traficantes. E quem fez com que o mecanismo de substituição do índio pelo negro prevalecesse no trabalho escravo foram os jesuítas. Então, historicamente, essa substituição não é porque o índio fosse ruim trabalhador escravo: ele se revoltava como o negro. Mas o capitalismo industrial, que se formava, precisava de uma acumulação de capital inicial e quem proporcionou isso foi o tráfico de escravo. O tráfico, fundamentalmente, começou na Inglaterra e ela que se beneficiava dessa triangulação. Agora, pegava os objetos produzidos pela economia colonial, escravista e redistribuía pela Europa toda. O açúcar, por exemplo que era um dos produtos mais caros da Europa, ia para a Inglaterra e ela então vendia para a França e outros países europeus e com isso se capitalizava. Então, uma grande fonte de origem do capitalismo foi o tráfico triangular. Com isso descartava o índio como escravo.

11. E por que o índio não tem o mesmo destaque que é hoje dado ao negro?

R. O índio não se articulou porque, quando você destribaliza o índio ele se transforma no caipira, no camponês sem terra. No presente, a população negra ainda é bem maior do que a população indígena – mesmo com todas as escamoteações das estatísticas. Mas não vamos tomar apenas o problema quantitativo. Quando falamos do índio, falamos de uma legislação específica, a um estado específico do que é o índio no Brasil. Embora saibamos que as leis não são respeitadas. O índio, é considerado uma etnia que sai do contexto da cidadania brasileira. Um índio é um índio, tem a demarcação das suas terras. Agora, o negro não! O negro é uma geleia. O negro o que é? O negro é cidadão brasileiro. “Todos são iguais perante a lei” e não é. Então é difícil você ver o problema do negro porque, inclusive, não há uma definição do que é ser negro no Brasil. É muito mais complexo para se resolver. Como também o problema do índio só se resolver através de uma sociedade não competitiva. Por que estão matando o índio? Por que o índio é índio? Não. É porque querem tomar as suas terras. A penetração do capitalismo no campo criou aquilo que se chama de zona pioneira pelo que vão invadindo as terras dos índios.

Eu não sei quantificar se se fala mais no problema do índio do que do negro ou vice-versa. Agora digo o seguinte: temos que resolver os dois problemas juntos, porque se você não resolve o problema do índio não resolve o problema do negro… E daí eu discuti com certas áreas do movimento negro que fazem um movimento negrista como se conseguissem através da luta do negro isoladamente modificar a consciência da sociedade brasileira para acabar com o preconceito.

Então são os dois aspectos que se intercruzam, o do negro e o do índio, mas os dois problemas só podem ser resolvidos dentro de uma solução global da sociedade brasileira, porque se você conserva os polos do poder que temos atualmente, que são polos altamente ligados às empresas que querem as terras dos índios e ao mesmo tempo são os mesmos que querem a marginalização do negro para manter o modelo capitalista altamente explorador, vamos ver que as coisas serão resolvidas simultaneamente através da mudança da estrutura da sociedade brasileira.

12. Como seria a solução global da sociedade brasileira?

R. Se você coloca nos polos do poder pessoas interessadas em resolver os problemas, um governo popular, um governo que democratize a estrutura da sociedade brasileira não haverá nenhuma contradição entre o poder e o problema. Agora se você coloca nos polos de poder um governo que está interessado em pagar a sua dívida externa através da exploração dos minérios, ele vai invadir as terras dos índios. Cria logo uma briga. Porque, dizia um dos políticos mais inteligentes desse país: todas as vezes que ele queria praticar uma iniquidade tinha um jurista que a justificasse. Então, vai aparecer isso.

Se tivermos um governo que não tenha interesse nesse tipo de exploração, nem em criar uma economia de exportação – é uma das características da economia semi-colonial, é justamente essa: nós exportamos não apenas os excedentes do setor primário, mas exportamos tudo e a população não consome exatamente porque não tem poder aquisitivo. Se há um governo democrático não vai ter interesse e nem permitir que se invada a terra dos índios. No dia em que se protestava contra a farra do boi, a imprensa abriu espaços enormes. Mataram 14 índios e ninguém falou nada. Saiu apenas uma nota que disseram que iam apurar e não apuram nunca, tanto que o colonizador dizia que “índio bom é índio morto”. A mesma coisa estamos vendo nessa época de neocolonianismo.

13. O que o sr. chama de “movimento negrista”?

R. Eu chamo o movimento que acha que o problema do negro está desligado do problema social brasileiro no seu conjunto e acham que o problema do negro tem de ser resolvido pelo negro. Eu digo sempre que isso é uma política que existia antes do regime colonial de dividir para governar. Se você não junta todos os oprimidos da sociedade brasileira, com as diferenças que seu sei que existem, mas há muito menos diferença entre um operário negro do que entre um negro capitalista e um operário branco. Evidentemente, na sociedade global, o negro além de ser explorado é também discriminado pela cor e explorado porque 99% da população negra é explorada – nós só temos 1% de empresários negros. Quando eu falo daqueles grupos negristas são aqueles grupos que querem resolver isoladamente um problema que é de toda sociedade brasileira. Os negros têm que apresentar um projeto político para a sociedade brasileira, sair de um impasse exatamente porque além de explorados são discriminados. Então eu digo: falta ainda um nível de consciência política aos movimentos negros para compreender isto. É compreender que muitas vezes estão sendo usados como massa de manobra das elites brancas através desse fomento do setor cultural: financiar escolas de samba, afoxés, financiar uma série de manifestações da cultura afro-brasileira que muitas vezes fazem a remontagem por já estarem desaparecendo. Porque isso faz com que o negro não pense politicamente.

14. Nesse ponto, os movimentos negros de hoje equivalem também à rebelião dos negros numa época mais remota?

R. Alguns. Porque quando os negros revoltam eles querem a mudança do sistema, eles intuem a mudança do sistema. Alguns movimentos negros querem fazer a mudança dentro do sistema. Eles não querem a mudança do sistema. Mas através do sistema que existe sem fraturar as estruturas preconceituosas ele resolve ver o problema do negro. Eu acho que isso não é possível. Eles estão atrasados em relação ao radicalismo dos escravos do século XIX na Bahia, para tomar o poder. A Revolta Malê em 1835 foi praticamente para tomar o poder. Por quê? Porque eles achavam que dentro do sistema escravista não resolveriam o problema. Eram escravos e não queriam resolver o seu problema de cor, mas resolver seu problema estrutural de escravo, de ser alienado. Portanto tinham um outro projeto de mudança. Agora certos movimentos negros não têm um projeto de mudança. Têm um projeto de integração neste sistema. Cada um quer ser doutor, general negro, não entrando no mérito a que tipo de governo ele vai servir.

15. E com esse tipo de visão tão apegada à cor acabam sendo tão racistas quanto…

R. Não digo racista porque na composição do racismo entra também o problema do poder. O poder a ferramenta que faz com que o racismo se dinamize. Se você não tem o poder não pode exercer o racismo.

16. O que difere o preconceito do racismo?

R. Quando se fala preconceito de cor é o eufemismo que o brasileiro usou para batizar o racismo. Assim como ele não chama de escravo mas elemento servil, ele também não diz racismo mas preconceito de cor. Mas é uma forma através do qual o racismo se manifesta. Há até uma censura no subconsciente do que se manifesta de uma maneira também semântica. Ao invés de dizer você é negro, diz você é moreno. Você também tem medo de chamar a outra pessoa de negro porque não sabe como o outro vai assimilar se chamá-lo de negro. Então o preconceito de cor no Brasil é o racismo brasileiro. As duas coisas funcionam da mesma forma.

No Brasil, é muito mais difícil você localizar o racismo porque ele é difuso. Nos EUA não. Lá se tem uma sociedade biracial: ou você é negro ou você é branco. Lá não tem esse conceito de mulato, de moreno. Se você tem genes negro você é considerado negro embora sua pele seja clara. No Brasil não, há toda uma escala cromática que faz em que todo mundo fuja de querer ser negro. Mulato é termo pejorativo que o brasileiro assimilou para se separar de negro. Mas, mulato vem do mulo, cruzamento do jumento com a égua, que o colonizador pensava que o cruzamento do negro com o branco dava um tipo híbrido como a mula. Foi um termo pejorativo. Hoje é uma forma encontrada pelo brasileiro para dizer “eu não, seu negro, sou mulato”. Então nos EUA não tem isso: você é mulato, você é negro. Porque lá sociedade é genotípica: se você tem gene negro, você é negro. No Brasil é fenotípica por causa da aparência da cor. Lá é diferente porque o colonizador inglês tinha força suficiente, era a economia capitalista mais desenvolvida do mundo, para colocar brancos de um lado, negro do outro. Já Portugal não tinha e teve que fazer essa melange para os negros não se revoltassem. É uma tática do colonizador dividir. Esse preconceito é o racismo à brasileiro, mas não tem nenhuma diferença qualitativa do outro. Tanto que os negros americanos, por isso, lutaram muito mais durante a abolição, depois da guerra da Sucessão e se integraram muito mais na sociedade americana do que o negro brasileiro. Hoje você encontra mais de 100 negros prefeitos nos EUA. O prefeito de Washington é um negro. Mas no Brasil não. O negro brasileiro nem sequer quer ser negro: as leis permitem essa diferenciação cromática. No Brasil nós criamos a chamada Lei Afonso Arinos que é um troço de um ridículo total. Eu ouvi o presidente José Sarney dizer que no Brasil se pune o racismo como crime. É uma mentira. A lei não pune como crime, pune como contravenção penal que é bem diferente. Contravenção penal é jogo do bicho, todo mundo faz e não é punido, a mesma coisa que você acender um cigarro no elevador e está lá escrito “É proibido fumar” e todo mundo fuma. As multas, devem estar em centavos de cruzados. A lei é de um ridículo total.

 Entrevista do sociólogo Clóvis Moura publicada no jornal mensal “O BERRO D’ÁGUA”, na edição número 15 do periódico juazeirense, referente ao mês 01/06 a 01/07 de 1988. A documentação pode ser encontrada no Acervo Maria Franca Pires.



Comentários

Postagens mais visitadas