8 de Março: mais uma comemoração ou uma reivindicação concreta

Na edição de março de 1987, o jornal Berro D´Água publicou o artigo “8 de Março: mais uma comemoração ou uma reivindicação concreta”, de autoria da professora Elisabet Moreira, em alusão a data comemorativa do Dia Internacional da Mulher. 

No texto, a professora relata a situação do desrespeito aos direitos da mulher, a falta de uma Delegacia Especializada para apurar crimes como violência doméstica e estupro na cidade de Juazeiro (BA) e a luta pelos movimentos de mulheres para combater o machismo e a cultura do patriarcado. Um dado relevante é que a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) só foi criada em 2006, no governo de Misael Aguilar Silva Junior. 

No contexto da pandemia da Covid-19, os movimentos de mulheres lutam para combater a violência doméstica e o feminicídio, tipificado como crime por meio da Lei 13.104 de 2015. Para saber mais sobre a situação da mulher, no ano de 1987, leia o artigo de Elisabet Moreira, transcrito abaixo. 



8 de Março: mais uma comemoração ou 

uma reivindicação concreta


Você sabia que a mulher não tinha alma? Pelo menos até o século VIII, quando a Igreja reconheceu isso, através do Concílio Nº 5. Até então só era reconhecida a alma no homem, e assim mesmo, apenas no homem branco. 

E nem precisamos ir tão longe na história. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem não abrangeu as mulheres. Em 20 de Maio de 1953, a ONU (Organização das Nações Unidas) precisou promulgar a convenção dos Direitos Políticos da Mulher, demonstrando assim que o sexo feminino era realmente discriminado na Declaração. E, confirmando a discriminação, a ONU, em 7 de novembro de 1967 promulgou a Eliminação da discriminação da Mulher.

Hoje em dia, com a mulher conquistando cada vez mais seu espaço - haja lugar comum nisso - ela carece de medidas concretas e imediatas que a beneficiem diretamente. E uma delas diz muito de perto à insegurança geral com que convivemos, a violência praticada especificamente contra a mulher, somente por ser mulher.

           

EM BRIGA DE MARIDO E MULHER NINGUÉM METE A COLHER

Ora, os fatos mostram cruamente que, se isso continuar acontecendo, milhares de mulheres continuarão a ser vítimas das mais diversas formas de violência que vão desde pequenas agressões até crimes mais graves com estupros e assassinatos, praticados pelos maridos, companheiros, pais ou irmãos.

 A vergonha e o medo levam a maioria das mulheres a se calarem. Levantamento feito pela Delegacia da Defesa da Mulher, criada em agosto de 1986 em São Paulo, mostra que a maior violência contra mulher é justamente aquela praticada dentro dos lares, nas quatro paredes do quarto e compartilhada pelos filhos. E que um número muito pequeno de queixas chega às Delegacias, em torno de apenas 10%. Essa proporção é ainda menor quando a agressão parte dos próprios maridos, companheiros, namorados ou parentes das vítimas.

A brutalidade destes crimes soma-se o descaso com que são tratadas nas delegacias comuns. Uma mulher chegou a declarar: “Os delegados sempre dizem que era melhor não registrar queixa porque o marido poderia ficar com raiva e bater muito mais." 

Daí é que os movimentos feministas, de organizações específicas das mulheres, reconhecendo estas condições adversas reivindicam delegacias especializadas para defesa da mulher, somente com funcionárias mulheres, no tratamento mais humano e mais adequado à sua condição. Inclusive porque, como a maioria desses crimes implica em sexualidade e tabus culturais, o caso realmente torna-se muito mais delicado e constrangedor para vítima.

COMO FICA JUAZEIRO NESTA HISTÓRIA?

Confirmando tudo isso, segundo informações obtidas na Delegacia de Polícia de Juazeiro, quase não ocorrem queixas de mulheres. 

O que mais acontece é a procura por guias para exames de lesão corporal, por conta de espancamento. A guia só é fornecida depois de registrar a queixa. Acontece que o processo não anda porque a mulher é encaminhada para fazer um exame no médico legista e não volta para entregá-la. 

Segundo Samuel A. Nascimento, quem mais se queixa é a mulher de baixa renda. Isso é explicável porque a violência nestes segmentos da população é muito mais comum, fazendo parte rotineira de seu cotidiano. Aparecem também poucos casos de estupros, ou tentativas, como eles muitas vezes são denunciados. Mas também as coisas não caminham, ou por que entram outros interesses em jogo, ou pelo próprio medo da mulher em continuar a denúncia, expondo-se publicamente. 

A maioria das queixas parte das mães em defesa de suas próprias filhas, muitas vezes menores entre 9 e 12 anos, perseguidas pelos pais, padrastos ou companheiros. No último mês de janeiro foram dadas queixas de 3 estupros, o que nos pareceu, ainda assim, muito significativo.

 Também ocorrem as inevitáveis queixas dos pais que vêm com as filhas menores para fazer o casamento "na marra". Faz-se o exame físico da garota, constatando a "vergonha" de ter sido desvirginada, faz-se casamento, através de um atestado da delegacia, assinado pelo médico. 

Quando a mulher é culpada, como no caso de roubos ou assassinatos, elas ficam em celas separadas dos homens e toma os seus banhos de sol em horários diferentes

E COMO FICA A JUSTIÇA?

Embora a justiça seja um substantivo feminino, ela parece ser mesmo só do masculino. Isto porque as leis brasileiras realmente favorecem o homem, numa lei feita pelos homens. A esperança das mulheres, de suas organizações, é realmente que, a partir desta constituinte e de uma organização mais eficaz, suas reivindicações se tornem mais concretas. 

Se a lei não é propriamente discriminatória, ela é assim interpretada, e usada de uma forma machista. Senão, vejamos: o caso da legítima defesa, que tem sido adaptada a "legítima defesa da honra", na defesa de homens que matam suas companheiras por ciúmes.

 Apesar de ter sido reformulado recentemente, a fim de que fosse reajustado ao progresso da sociedade, o Código penal ainda discrimina mulher, considerando crime o aborto. O Código Civil, por sua vez, é altamente discriminatório. Até 1961, ele comparava as mulheres aos índios e as crianças e aos doentes mentais. Mesmo tendo sido modificada essa legislação, o Código ainda considera o homem com cabeça da família. A mulher não tem, pois, pátrio-poder, pelo atual Código Civil. Assim, toda administração dos bens do casal fica por conta do sexo masculino. A legislação permite, ainda, que o homem anule o casamento, caso a mulher não seja virgem. 

Quando a lei não é claramente discriminatória, é paternalista ou protecionista, para proteger os interesses dos homens, com argumento de que é para garantir a integridade física da mulher. A legislação trabalhista, que é de 1945, é especialista nisso. Não permite, por exemplo, que a mulher faça hora-extras. A CLT proíbe também a jornada noturna para os trabalhadores do sexo feminino e contém um artigo que dá poderes ao marido de fazer com que a mulher saia do emprego, desde que o trabalho fora de casa, segundo o entender do homem, esteja prejudicando a relação familiar.

O Direito Comercial, da mesma forma, é altamente discriminatório em se tratando do sexo feminino. Caso seja casada, a mulher precisa dar o nome do marido e até, em muitos casos, precisa do aval do homem para abrir crediário. Para ser proprietária rural, por exemplo, a mulher camponesa é obrigada a provar que é capaz de tornar a terra produtiva, exigência que não é feita ao homem.

É claro que há leis que beneficiam a mulher, mas estas são mínimas em relação ao que é realmente necessário, a uma igualdade plena de direitos.



E A DISCRIMINAÇÃO DE TODOS OS DIAS?

Independente de todo o machismo e de toda a discriminação da legislação brasileira, há outras formas aberrantes de machismo. Basta acompanharmos pelos noticiários. Por exemplo, mulher não pode – ainda - usar calças compridas nos tribunais, e por aí fora. Ou, o mito de que toda mulher que se veste ou age de maneira provocante faz um convite à violência. E há muita gente que acredita nisso, visto que a própria Igreja manteve essa ideia durante muito tempo.

Da própria Bíblia aprendemos que a mulher devia se manter virgem até se casar, caso contrário seria considerada uma propriedade sem valor para seu pai, que dava ao noivo a garantia de lhe "vender" uma mulher imaculada. Durante séculos as mulheres aprenderam que um de seus principais deveres matrimoniais é satisfazer as necessidades sexuais de seus maridos.

Por tudo isso é natural que as mulheres e - os homens também - tenham ficado confusos em relação a seus direitos, achando que sofrer é normal. Quando não deve ficar em segredo, para mascarar uma relação ou proteger interesses.

Muitos homens acham, por ignorância cultural, que é prova de masculinidade submeterem uma mulher pela força física e que isso, além de perfeitamente natural, possa ser agradável para ela.

Por todas essas razões é que a escritora Susan Brownmiller, escritora e feminista americana, acredita que no caso do estupro, este é um fenômeno político encarado como um processo de intimidação pelo qual os homens mantêm as mulheres em estado de medo e terror. Ainda mais quando corroborado por leis e uma justiça discriminatória. 

Há muitos criminalistas que são contra as Delegacias de Mulheres, considerando que elas caracterizariam ainda mais a discriminação contra as mulheres. Acreditam que o ideal seria preparar ou adequar para as mulheres as delegacias comuns, com setores especializados, com instalações próprias, com banheiros femininos e também assistência social, psicólogos e policiais femininos. 

Mas os movimentos de mulheres não pensam assim. Estatísticas provam que após a criação das Delegacias especializadas no atendimento às mulheres, os casos de denúncias aumentaram sensivelmente, porque a mulher passou a se sentir mais segura, mais amparada e sem tanta vergonha de contar e comunicar os atos de violência praticados contra ela. 

Agora é hora de Juazeiro se posicionar frente ao assunto, de nossas lideranças reivindicarem uma Delegacia de Mulheres para a cidade, fazendo parte de uma sistemática que nos colocará um passo à frente de um real dimensionamento do problema. Acabar com esta história de que em “briga de marido e mulher não se mete a colher”. Não só um problema social, mas problema policial mesmo, com uma legislação e um atendimento condizentes.

Sobre a Autora:

Elisabet Gonçalves Moreira é paulista, aportada em Petrolina desde 1976. Tão longa data que já é oficialmente cidadã petrolinense. Hoje está aposentada de uma carreira no magistério. É mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo – USP. Ativa em pesquisas e estudos sobre a cultura popular, diálogos com a arte em geral, colunista em diversas mídias, escreve prefácios, críticas, traduções, publicando aqui e ali,inclusive um blog em atividade desde 2015, neste link betcomtmudo

Destacam-se os livros “Poética Ribeirinha – Antologia Literária de Petrolina – 1995”, publicado pela UPE, “Carrancas do Sertão – signos de ontem e de hoje”, pelo SESC-PE, 2006, “Leituras exemplares à maneira de Tolstói”,edição pessoal, 2019. Acredita que sua visão de observadora da vida e de momentos especiais se realiza melhor na prosa crítica ou crônica, como gênero, embora se exponha em pequenos contos.  Por prazer, também desenha, pinta e borda.

Este artigo foi escrito em 8 de Março de 1987.


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