Estórias Juazeirenses
Maria FRANCA Pires. Sessenta e cinco anos
de história com 18 de magistério em Juazeiro. Figura de peso na cultura
juazeirense, é testemunha legítima dos feitos dessa cidade. Pesquisadora nata,
amante da vida e do trabalho, trabalhadora sem trégua e também uma figura
polêmica, de ideias próprias e de coragem desconcertante.
Maria Pires nasceu em Remanso-BA, na
Fazenda Salinas, veio para Juazeiro com 2 anos de idade. Aqui cresceu, fez-se
gente e enraizou-se. Enfrentou muita lida, construiu seu destino, fez conceito,
adquiriu respeito. Entretanto, ainda se sente acanhada por ter se apaixonado
por Juazeiro.
Maria não se casou. Nunca se intimidou.
Viveu Juazeiro ontem. Vive Juazeiro hoje. Avalia o presente recorrendo ao
passado. Expõe suas ideias. Mostra-se sem receio, como sempre o fez: com
firmeza, com franqueza como que lhe imprime o nome. Confirme.
P. Como foi sua carreira no magistério?
R. Foi uma luta muito grande: recém-formada
em 1.941, fui convidada a lecionar no Colégio das Freiras, em Petrolina, onde
havia me formado. Em 1942 fui fazer concurso em Salvador para o magistério
primário. Fiquei com uma família muito amiga de meu pai e achei que aquela vida
da capital era muito melhor do que voltar para o interior, então, lá em
Salvador, eu dei curso particular, fui uma das fundadoras da escola do SENAI em
1945. A escola funcionava no Barbalho, no prédio da Escola Técnica de Salvador.
Em 1947, lecionei na Escola Abrigo dos Filhos do Povo, que era dirigida pelo
pai de Irmã Dulce, Dr. Augusto Lopes Pontes, um homem muito exigente.
Justamente nessa época fui nomeada para o
estado e comecei minha vida de professora primária em Bom Jesus da Lapa.
Lecionei lá o 2º semestre de 1947, todo ano de 1948 e 1949. Foi uma experiência
muito boa, bem distante de casa, da família, em um lugar que eu apenas conheci
de passagem. De lá fui removida para Remanso. Nessa remoção não fui muito
feliz, justamente no ano de 1950, ano de eleições. Eu era uma grande admiradora
de Juracy Magalhães e votei nele. E, pelo fato de ter votado em Juracy e ter
sido transferida para lá pela força política de Dr. Luiz Viana Filho, fui
perseguida pelo grupo do PSD da época. No ano seguinte fui transferida para
Sento-Sé, porém não tinha nenhum sentido eu ir trabalhar lá e o Dr. Luiz Viana
conseguiu minha remoção para Remanso. Os políticos do PSD sentiram-se agredidos
e com seus méritos diminuídos perante seu eleitorado. Vinte e sete dias depois
o Dr. Régis Pacheco, que tinha sido concorrente de Juracy Magalhães e vencedor
da eleição, transferiu a cadeira que eu ocupava em Remanso para a sede de
Juazeiro, continuando sob minha regência. Então, desse jeito, consegui meu
grande sonho que era ficar junto de meu pai, junto de minha família. E desde
1951, todo o meu campo de trabalho foi aqui.
P. E sua história, como mulher, como é que
foi? Teve barreiras, não teve barreiras?
R. No meu tempo era diferente! Naquela
época tinha a figura do pai, da mãe, do avô, da avó, das tias velhas e os
primos velhos ainda eram tios, também! A gente tinha que respeitar essa gente
toda. Vivíamos dando satisfação dos nossos atos à família toda e eu não gostava
de fazer isso, mas tinha as minhas limitações. Acho que nasci numa época
errada, para mim, para o meu temperamento, para o tipo de gente que eu sou,
nascendo agora, talvez, fosse melhor.
P. Por que seria melhor nascer na época de
hoje?
R. Eu gosto de liberdade, gosto de me
dirigir, não gosto de receber ordens. Naquele tempo, para sair, quantas e
quantas vezes eu chorei na porta desta casa em que nós estamos. Porque eu
queira passear na rua D’Apolo e meu pai dizia que a rua D’Apolo não era lugar
de moça decente. Imagine! Eu achava que toda decência estava na rua D’Apolo!
Então, quando ele dizia aquilo eu sentia uma verdadeira revolta contra a pessoa
dele. Mal ficava calada. Quer dizer: o espírito era rebelde mas as leis exigiam
silêncio. Quando eu podia fugir, claro, eu fugia, ia passear na rua D’Apolo,
que foi uma das coisas mais lindas que Juazeiro já teve.
P. Como era a rua D’Apolo?
R. O passeio da rua D’Apolo começou no
início da década de 30, parece que foi em 34, 35. Eu conheci aquilo sem nenhum
calçamento. Naquela época a gente comprava a fazenda para ter vestido novo. Não
comprava o vestido porque não tinha boutique, sapato novo, meias de seda,
usavam todas as joias que tinha, todo rouge, todo batom. Ninguém pintava os
olhos, não era comum naquela época. Muitas mulheres acentuavam as sobrancelhas
com tampa de curtiça queimada, de noite iam para aquele passeio, super gostoso.
Os rapazes faziam filas de um lado e de outro e nós ficávamos passeando de
braços dados. Ainda hoje eu gosto. A coisa mais romântica que eu acho é você
dar o braço a uma pessoa e sair andando. Era dali, da esquina da Maçonaria, até
a esquina do Bazar Royal e da lá nós voltávamos. Ali surgiam os namoros, os
flertes, todas as histórias, os galanteios…
P. Quem era o mais paquerador, o namorador
da sua época?
R. Era Arquimínio. Arquimínio foi o número
1 em Juazeiro, na sua juventude.
P. E a menina mais namoradora da época?
R. Não tinha. Toda menina tinha a
preocupação de ter muita moral.
P. O divertimento era só o passeio na rua
D’Apolo?
R. Não. Quando a cigarra do Cine São
Francisco apitava todo mundo deixava a rua D’Apolo e entrava no cinema para
assistir ao filme. O filme era uma coisa importante na vida da gente. Na
segunda-feira, havia uma sessão mais barata, para as mulheres, no cinema. Só
para as mulheres era mais barato. Eram exibidos dois filmes. Na quarta-feira
era o melhor filme da semana. Então, para a gente assistir aquele filme íamos
novamente lordes. Aquela lordeza que a gente usava no domingo. Houve uma época
em que foi construído o Jardim São Francisco, onde hoje está o vapor Saldanha
Marinho. Aos domingos à tarde, o passeio era ali no cais. A gente ficava
passeando até as 6 horas da tarde, depois todo mundo ia em casa, jantava e
voltava para o passeio da rua D’Apolo e depois pro cinema. Neste jardim,
construíram a 1ª fonte luminosa que a cidade teve.
P. E tinham outras diversões em Juazeiro
além do passeio na rua D’Apolo e do cinema?
R. Tínhamos os célebres passeios à bordo
que marcaram época em Juazeiro. Eram muito animados, sempre realizados com
objetivos filantrópicos. Pagava-se ingresso, e pagava a comida e um conjunto
para tocar o dia todo. Muitas vezes os pais não nos deixavam ir. Se a gente
fazia dois passeios seguidos, no terceiro, o pai achava que a gente não deveria
ir porque estava participando demais do passeio a bordo. Isso as pessoas hoje
em dia não têm. As moças e os rapazes ficam esperando a noite para frequentarem
as boates. A primeira boate que teve em Juazeiro foi na rua D’Apolo, Dr. Geraldo
Rocha trouxe esta novidade para a cidade – boate Shangrilar. Foi assim um
escândalo. O povo nem sabia o que era que significava aquilo. Assim, a gente
entrava lá discretamente. Mesmo de dia procurava entrar com todas as reservas.
O movimento só ia até meia noite, ou meia noite e meia. Só depois de anos e
anos, já nos confins da década de 60 foi que Clésio abriu aquela boate, a
“Zíngara”, ali naquela área do Pingüim. Eu acho que as pessoas viveram muito
mais.
P. A partir de quando você começou a se
interessar por pesquisar a história de Juazeiro e por quais motivos?
R. Eu, perguntando a mim mesma, não sei se
houve algum motivo para entregar-me a este trabalho da maneira que me
entreguei. Apenas a coisa aconteceu. E acho que se uma pessoa por exemplo, disser,
“a partir de agora eu vou pesquisar a história de Juazeiro ou a história de
qualquer outro lugar e colecionar coisas, ela não vai durar nesse trabalho nem
seis meses, porque essa coisa é muito complicada. Todo trabalho só tem
continuidade se estiver dentro da pessoa. Eu tenho, por exemplo, coisas aqui,
dentro de casa desde quando era menina. Por exemplo: a máquina que você está
vendo é uma máquina alemã, foi do meu avô, assim com uma caixa de música e um
gramophone. Aqui em Juazeiro em 1910, foi lançado um almanaque
lítero-comercial. Ele está hoje com 77 anos. Então eu vi aquele almanaque. Eu
andava por aí mas, quando chegava, sempre abria as gavetas para ver se ele
estava no mesmo lugar. Existia antigamente um almanaque luso-brasileiro, um
almanaque pequeno. Eu tenho números do século passado. Meu avô assinava aquele
almanaque. Eu tenho dicionário charadístico, de charadas. Era uma coisa
engraçada: naquela época os homens gostavam de decifrar charadas. Então fui,
desde menina, juntando essas coisas. Jamais enfeitaria as minhas paredes com
quadros de flores, paisagens, essas coisas. Acho bonito, mas bem longe da minha
casa. Dou mais valor a quadros assim: fotografias de Juazeiro, que sirvam de
documentos. Isso pra mim é que tem sentido. Peças de artesanato, aquela
indumentária toda de vaqueiro, a cabaça, etc. Fui criada vendo até filho de
escravo, que morou lá com meus avôs maternos, betendo a nata na cabaça para
separar a manteiga do soro. É bonita, por exemplo, a lamparina, que serviu a
uma das barcas de seu Dominguinhos, barqueiro muito amigo do meu avô.
P. Qual é o seu interesse?
R. É apenas um trabalho que eu gosto de
fazer e me realizo fazendo-o. Acho que Juazeiro, como todo lugar no mundo, tem
perdido parte de sua história por não arquivar todos os acontecimentos. Em
1984, já como professora aposentada e funcionária efetiva da SUDESCO,
trabalhando no Centro Social Urbano fui requisitada pela Prefeitura, para fazer
uma pesquisa. A gente tinha o propósito de instalar a Fundação Instituto
Geográfico e Histórico. Mas eu comecei minha pesquisa não em documentos
escritos. Porque isso muita gente já fez e chegou até a publicar livros. O que
eu acho importante é você registrar a história que vive na cabeça do povo.
P. O que é a “história que vive na cabeça
do povo”?
R. É essa história que não foi
registrada em livro nenhum mas que aconteceu. Toda história que aconteceu é
importantíssima. Não existe uma história mais importante que outra. Por
exemplo: as festas da padroeira. Nós já tivemos em Juazeiro festas impressionantes
na época da disputa entre “Apolo” e “28 de setembro”. Naquele tempo, onde os
recursos eram mínimos, onde não existia tenaz, a goma era feita com tapioca,
onde não existia cartolina, porque a cartolina era apenas o papelão, onde não
existia o tule, quando se queria fazer nuvens, fazia-se mesmo era com algodão,
quando não existiam os artifícios de hoje, as pessoas conseguiram fazer coisas
impressionantes. O papel que a gente tina em mãos era o papel crepon, ainda
hoje, sou a grande admiradora deste papel. E as pessoas fizeram arte
verdadeira, arte pura, arte impressionante. Então fico muito gratificada quando
converso com as pessoas e elas colocam para mim essa história. Outro exemplo:
Juazeiro tem uma faceta muito engraçada: Juazeiro foi a terra das assombrações.
Era assim: “na rua de baixo está aparecendo um homem de saia comprida, de
chucalho, com as cabaças e não sei o quê”; “a mulher de sete metros apareceu
ali na praça da Misericórdia”; “apareceu um bicho na beira do rio”. Sempre
apareciam coisas aqui em Juazeiro. Então minha gente, isso é história. Isso
para mim é uma coisa tão importante como a gente saber que os Garcias D’Ávila
passaram em Juazeiro, que Juazeiro surgiu de uma aldeia de índios Cariris.
Porque isso é a história da terra. Eu já tive oportunidade de conversar com
cento e tantas pessoas e procurei registrar tudo que essas pessoas tinham a me
contar, todos os tipos de história, porque elas são importantes. Esta pesquisa
está em cadernos, arquivada em minha casa.
P. O que você vai fazer com tudo isso?
R. E eu sei? Eu só sei que no dia em
que eu morrer, podem até tirar uma grade dessas da janela, para ser mais fácil
jogar tudo aí de janelas à fora, queimar. Porque o que tudo isso terá de
sentido para mim depois que eu morrer? Não vai ter nenhum.
P. Para você não, mas tem para a
comunidade. E então?
R. Para Juazeiro seria de muita
importância. Mas, eu pergunto assim: a quem entregar? Infelizmente eu não
confio em ninguém, pelo seguinte: Isso para mim tem um sentido infinito, como
tem servido principalmente à comunidade estudantil de Juazeiro que tem me
procurado para dar informações sobre o município! Nesses anos todos que tenho
vivido aqui em Juazeiro, o que é que tenho assistido? Destruição. Juazeiro é
uma terra que não preserva as coisas. Destrói mesmo, porque é uma coisa assim
que está na alma do povo, destruir. O exemplo está ali no Clube Comercial. O
que o Clube Comercial teve na sua época de Clube Comercial, se tivesse sido
conservado, não precisava ser ampliado. Chegou a ter mais de 11 mil volumes de
livros, para que ampliar? Só tinha necessidade de ser conservado. E foi
praticamente destruído. Lamento que eu não tenha mais condições físicas de
pegar volume por volume. Felizmente, esse ano apareceu um jovem louco, porque
Bruno Santana é um jovem louco, e se meteu ali dentro para fazer uma limpeza
que eu achava impossível ser feita. Hoje, o chão está encerado, portas e
janelas abertas todos os dias.
P. Essa característica de destruição que
você falou, em todas as áreas política, cultural, econômica, como é isso?
R. Não há uma explicação. O que eu noto é
que antigamente, na parte de cultura, na parte de arte, em todos os setores
havia pessoas que assumiam a frente de um trabalho e todo mundo aceitava-as.
Aceitava sua metodologia de trabalho e todo mundo se integrava. As pessoas
tinham respeito pelas outras. José Petitinga foi o homem que mais elevou o
Clube Comercial. Era forasteiro e como ele, tantas pessoas que trabalham e
trabalharam nessa cidade e que sempre deixaram-se apaixonar por ela. José
petitinga era um mestre, e assim era chamado. Ele dava a organização, o
planejamento do trabalho e dali surgiram os escritores, os poetas, os
jornalistas, os dramaturgos. Mas por que isso? Porque todo mundo, os jovens,
principalmente, tinham respeito.
As pessoas daquela época eram tão seguras
que não tinham medo de respeitar as outras. Os homens daquela época, que ainda
hoje vivem, eles se referem a José Petitinga como uma pessoa respeitável como
intelectual. No teatro, por exemplo: Trajano Bandeira, Demerval Lima,
Constantino Nascimento, não tinham medo uns dos outros. Hoje em dia, se você
vai fazer um trabalho, a cidade todinha vai de encontro a você: você não tem
qualidade; seu trabalho não presta, tudo isso. Então, o que eu noto, é que as pessoas
de hoje são pessoas fracas, não têm coragem de bater palmas. É muito importante
você valorizar o trabalho do outro. É isso que está atrapalhando muito. A
diferença entre o passado e o presente de Juazeiro é uma diferença infinita só
por isto: as pessoas de antigamente eram seguras.
Entrevista de Maria Franca Pires publicada no jornal mensal “O BERRO D’ÁGUA”, na edição número nove do periódico juazeirense, referente ao mês 20/10 a 20/11 de 1987. A documentação pode ser encontrado no Acervo Maria Franca Pires.
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